Isso aconteceu há algum tempo, quando a avó da minha esposa faleceu. Eu apenas imaginava como poderia ser um velório e um enterro. Nunca tinha ido a nenhum. Antes disso acontecer eu não lidava muito bem com a morte. Mas depois dessa experiência eu passei a olhar esse tipo de ritual de outra forma, foi depois desse enterro que eu tive a real noção de como a morte é unicamente um comércio, seja ele capitalista, no real sentido da palavra, ou não.
Tudo começou quando recebemos a notícia que Dona Genoveva, internada fazia um mês, tinha acabado de falecer. Então saímos às pressas eu, minha esposa, seu irmão e a namorada dele. Ao chegarmos ao hospital encontramos seus pais, que estavam atordoados. J P, seu irmão estava alquebrado emocionalmente e as únicas pessoas com estado emocional o menos abalado possível éramos eu e minha mulher, então ficou para nós a árdua tarefa de tratar da parte burocrática do falecimento.
Depois de pegar o atestado de óbito, ficamos só eu e ela para receber o representante da funerária que cuidaria de tudo, o restante da família foi embora descansar. Ao chegar o funcionário, cheio de receio em falar conosco, já que não sabia como estaria o nosso estado emocional, foi avisando que teria de fazer algumas perguntas de praxe. Como um bom profissional do ramo tentou transparecer uma sensibilidade com a situação e começou a preencher um formulário com informações que ele disse serem importantes para tratar do enterro. Perguntou se tinha deixado filhos menores, se tinha algum bem, se tinha feito testamento, número de documentação, perguntas que num momento de tristeza como esse acabam se tornando inoportunas. Disse que não era para nos preocuparmos que a capela já estava reservada, o horário do enterro acertado e que não precisávamos nos preocupar que até a certidão de óbito seria providenciada, tudo muito eficiente, muito profissional, sugeriu que fôssemos embora que ele cuidaria da remoção do corpo, e tudo isso ainda no hospital. Eu ainda iria me surpreender com todo esse profissionalismo.
No dia seguinte fomos para a capela reservada velar o corpo, lá continuou a sucessão de comércio e “profissionalismo” a serviço da morte. Ao chegarmos havia algumas pessoas de branco anotando os nomes que estavam sendo velados. Não demorou muito para que uma delas entrasse em nossa “capela” oferecendo seus serviços espirituais. Disse que era de alguma dessas igrejas do divino alguma coisa e que se a família não se opusesse eles viriam meia hora antes do enterro para fazer uma oração. Claro, todo conforto espiritual ajuda nessas horas, mas ficar igual urubu procurando morto para divulgar sua crença, aproveitando a fragilidade emocional da família é um pouco mórbido, e não ficou só nisso.
Depois de muito choro e desejos de pêsames de amigos e familiares, veio um homem com o crachá da prefeitura, que com certeza estava acostumado a essa situação, disse com toda a frieza de seu ofício que era hora de fechar o caixão, ignorando os apelos da família, dizendo que estava na hora e que ainda tinha muito enterro naquele dia, não podia haver atrasos, nesse momento cheguei a uma conclusão: até para se morrer tem que marcar hora.
A capela ficava do lado de fora, então saímos todos e fomos num cortejo cemitério adentro seguindo a Kombi da prefeitura onde estava o caixão. No caminho paramos para comprar velas, flores e até caixa de fósforos, mesmos as tradições fúnebres são comercializadas hoje em dia. Ao entrar no cemitério parecia que todos haviam escolhido morrer no domingo, já que estava cheio e os caminhos do lado de dentro estavam de certo modo congestionados. Novamente alguns sensíveis religiosos de alguma assembléia de alguma coisa do reino não sei de onde ficava aos gritos apregoando sua fé para quem quisesse e não quisesse ouvir, interrompendo cortejos para entregar panfletos de sua igreja. Mais a frente outra cena inusitada; um homem com uma capa nas costas recebendo alguma entidade do candomblé.
E o cortejo chegou ao seu ápice: chegamos à cova que seria o descanso eterno da doce velhinha. Com toda sua presteza o funcionário público pediu que alguns homens presentes ajudassem-no a retirar o caixão do carro. Então a urna foi colocada dentro da sepultura e depois de algumas demonstrações de tristeza por parte dos familiares os coveiros começaram a jogar terra sobre o corpo. Tudo acabado um dos funcionários do cemitério, com toda a sutileza de quem faz isso todos os dias disse que poderiam colocar flores e acender as velas ali mesmo que não era proibido.
Bem, estava tudo acabado, fomos saindo devagar consolando a família, vendo os outros cortejos que se seguiam. Ainda estava no horário comercial e o dia estava cheio, os funcionários com aquele ar enfadonho de quem vai trabalhar numa segunda ensolarada contrastando com o ar de tristeza de pessoas que iam prestar sua última homenagem a seus entes mortos e assim a tarde foi se seguindo. Nesse momento me veio um pensamento um tanto mórbido e inoportuno; aquela tinha sido uma boa morte: não houve nenhum vexame de parente desesperado, ninguém, num ato de dor se jogou sobre o caixão, os funcionários fizeram seu trabalho como sempre fazem e tudo correu muito bem em mais uma tarde de segunda-feira no cemitério de Irajá.