terça-feira, 29 de maio de 2007

EDUCAÇÃO É DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO

O título acima pode ser encontrado em qualquer constituição dos países ocidentais, seja na Europa, ou nos EUA e até mesmo nos países sul-americanos. Na nossa legislação, em vigor desde 1988 também existe essa determinação, inclusive,por isso, há uma tentativa dos governos em reduzir a zero o analfabetismo no Brasil fazendo uso de programas assistencialistas para manter as crianças nas escolas. Mas por que ainda é tão difícil para pessoas mais pobres chegarem às universidades e ascenderem socialmente através do estudo e competirem de igual para igual no mercado de trabalho com os mais favorecidos?
Esse comportamento – educação oferecida pelo estado – é recente, surgiu no final do século XIX. Devido a Revolução Industrial que cada vez mais precisava de mão-de-obra especializada para trabalhar nas fábricas das grandes cidades foi preciso repensar a estrutura social, daí surgiram conceitos como o estado laico e o assistencialismo às camadas mais pobres da população. Mas desde essa época já houve uma segregação disfarçada de ajuda. A educação passou a ser sim direito de todos e dever do estado, porém não foi dito que ela seria IGUAL para todos. Então o que aconteceu (e continua a acontecer) foi que os filhos dos operários iam para escola como o filho do dono da fábrica, entretanto não era a mesma escola, quando cresciam o filho do operário tinha aprendido a ser apenas operário e ia trabalhar na fábrica do filho do industrial que tinha se preparado pra ser industrial igual ao pai. E o que tudo isso tem a ver com a nossa realidade hoje? Muito simples, o que vemos hoje é o mesmo que acontecia no final do século XIX na Europa. O filho do operário, do camelô ou da doméstica vai continuar os passos do pai e o filho do juiz, do médico ou do político vai ser preparado para as profissões do topo da escala social.
Trazendo para a nossa realidade isso fica claro ao assistirmos a propaganda eleitoral e os dois candidatos à presidência da república alardearem que vão construir mais escolas técnicas. Ora enquanto seus filhos e netos terão acesso aos melhores colégios do país onde terão contato com a história da humanidade, a literatura, filosofia e com um ensino voltado a prepará-los para a disputa das mais renomadas universidades e os principais concursos públicos do país, o filho do mecânico, do bombeiro hidráulico, do técnico em eletrônica, vai continuar a ser apenas técnico. Sem qualquer aprofundamento em outras áreas do conhecimento humano esses jovens aprenderão apenas o suficiente para tornarem-se técnicos em alguma área profissional sem reais condições de disputa por vagas nos bancos acadêmicos ou no mercado de trabalho. Mesmo dentro da lei – que é proporcionar educação para todos – ainda assim há uma separação social onde o filho do pobre vai continuar não tendo chances de subir na escala social e o filho do rico vai continuar no topo dessa escala. O que deve ser feito então é uma reformulação total no sistema educacional do país, é preciso olhar os programas de educação realmente eficientes de outros países onde todos têm chances iguais de progresso, como é o caso da Coréia do Sul e também olhar para programas que dão certo aqui mesmo no Brasil, padronizando as escolas públicas com escolas que sejam referenciais de eficiência, é aparelhar melhor essas instituições, dar condições aos professores de se especializarem, se atualizarem, ganharem salários dignos e melhores condições de trabalho sem cargas horárias desumanas. Só assim o filho do técnico em eletrônica poderá um dia se tornar um analista de sistemas, o filho do pedreiro poderá ser um dia um engenheiro e com reais chances de disputar concursos e vagas no mercado de trabalho com o filho do patrão do seu pai.
(Texto originalmnte publicado na Revista Mercês de dezembro de 2006.)

segunda-feira, 28 de maio de 2007

A VOLTA (PARTE FINAL)

(Continuação)
Foi pensando assim que o rapaz foi se dirigindo ao hotel. Realmente era fácil de achá-lo. No caminho ele olhava os rostos das pessoas e não reconhecia em seus traços qualquer semelhança com pessoas do seu passado e eles também eram indiferentes, ninguém conhecia e não tinha qualquer interesse em conhecer aquele forasteiro que estava andando pela cidade, provavelmente era mais um pesquisador que ia conhecer a serra. Mauro se hospedou no hotel e foi direto para o quarto. Estava cansado física e emocionalmente, não esperava que sua viagem tivesse tomado esse rumo. Tomou um banho, pediu um lanche no quarto, ficou na cama vendo tv, só desceu para jantar e depois voltou para dormir. Não tinha coragem de procurar Flavinha naquele dia, não sabia se suportaria mais alguma decepção, preferiu reunir forças, descansar e decidiu sair bem cedo, logo pela manhã para ir a casa dela. Ainda lembrava o caminho, mas depois do que lhe aconteceu, não significava muita coisa.
O telefone do quarto tocou logo cedo. Mauro ainda estava mais dormindo que acordado quando ouviu do outro lado da linha uma voz de sotaque carregado dizendo:
- Senhor Mauro? São oito em ponto, o senhor pediu para lhe acordar nesse horário. O café já está servido e fica até às dez horas, se o senhor preferir podemos mandá-lo ao seu quarto.
- Não, muito obrigado, já vou descer.
- Tudo bem senhor, tenha um bom dia, se precisar de um guia e só solicitar-nos.
- Tudo bem, não vou precisar não, bom dia.
Um guia. Mauro ficou pensando na indicação, precisava de um guia, mas não de forma convencional, ainda sabia andar pela cidade, as ruas não mudaram de lugar. Precisava, sim, era de alguém para lhe guiar pelas mudanças que se abateram lá.
Depois do café ele começou a caminhar pela avenida em direção a casa de Flavinha. Ainda lembrava o caminho, se é que ela ainda morava com seus pais, mas pelo menos teria alguém para lhe indicar o paradeiro dela. A rua ainda era a mesma. No fim da rua principal, virando à esquerda e depois à direita, ele tinha que seguir, passar pela igreja, a praça paroquial e três casa depois estaria na casa da família dela. Ele foi olhando o caminho. Nesse trecho da cidade não teve qualquer mudança. Provavelmente os moradores das casas são outros, mas as fachadas ainda são as mesmas. A igreja e sua praça também não tinham sofrido qualquer mudança. Olhou para o coreto abandonado e se viu menino, correndo pelo gramado, subindo nos bancos de concreto, brincando com seus primos num domingo ensolarado. Primos que não via há muito tempo e que não tornaria a ver.
Mauro chegou em frente a casa. A mesma ansiedade da véspera voltou, mas já não tinha a mesma ilusão. Bateu palmas, não havia campainha no portão. De lá de dentro veio uma mulher, provavelmente da sua idade, um pouco envelhecida pelo trabalho doméstico, mas ainda assim bonita. Ela veio até o portão ver o que queria aquele estranho em sua porta. No princípio ele não a reconheceu, até que mais perto, quando ela chegou no portão e o estranho viu seus olhos. Os mesmos olhos de vinte anos atrás, com a mesma doçura, apesar da vida difícil, com o mesmo brilho que fez com que se apaixonasse perdidamente. Ao vê-la não conseguiu falar. Era ela que estava ali na sua frente. A viagem não tinha sido em vão. Ela por sua vez não entendia por que aquele homem estava no seu portão com lágrimas nos olhos, sorrindo para ela e mudo. Ele criou coragem e falou:
- Voltei para cumprir minha promessa. Vim pra te levar pra morar no Rio.
Num primeiro momento Dona Flavinha, como era conhecida agora, não entendeu nada, promessa, que promessa? O que esse sujeito estava falando, porém, como se tivesse sido aberta uma cortina para o passado ela se viu com dezesseis anos e aquele homem de quase quarenta anos se transformou em Maurinho, seu amigo e amor secreto. Ela não se conteve, abriu o portão e pulou em seus braços, apertando-o como se dessa forma compensasse todos os anos que ficaram separados por um país de distância.
Eles entraram. A casa ainda era a mesma, mas a decoração havia mudado. Ela falou que seus pais tinham ido viver em São Luiz do Maranhão e ela ficou com a casa. Disse que casou, teve filhos, tinha virado dona de casa. Ele por sua vez falou de sua carreira como acadêmico numa conceituada universidade do Rio. Contou como foi sua vida lá, sua tristeza de ter ido embora e o seu desejo de reencontrá-la. Então falou o que não teve coragem há vinte anos atrás:
- Nesse anos todos me envolvi com alguma mulheres, mas nenhuma conseguiu tirar você da minha cabeça. E a todo o momento lembrava da promessa que eu fiz pra você quando fui embora e de como me doeu não ter me declarado a você. Eu te amo desde aquela época e nunca te esqueci. E eu vim pra tentar recuperar o tempo perdido, te levar pra ser minha mulher, viver comigo no Rio, diz que aceita, diz que me ama e que é isso que você quer.
Flavinha ouviu com ternura tudo que Mauro disse. E realmente se sentiu por um instante tentada a largar tudo, casa, filhos, marido, e partir nessa viagem, mas ela não era dada a acessos de paixões, então ela olhou nos olhos de Mauro e disse:
- Desde que éramos meninos, eu te amava e sabia que você também, eu via nos seus olhos. Eu passava noites em claro pensando quando você ia se declarar ou se eu teria coragem de fazer isso. Quando você foi embora eu sofri muito. Fiquei anos esperando uma carta sua que nunca chegava. Até que eu passei a acreditar que você havia me esquecido. Você tava no Rio de Janeiro, convivendo co mulheres lindas, nunca ia ficar pensando numa caipira como eu...
- Mas eu pensava em você o tempo todo!
- Não pense que estou te cobrando nada, deixa eu terminar, por favor! Então eu procurei te esquecer também. Nessa época eu comecei a me aproximar de Jorge, primo de Sorlene, minha amiga. Nós ficamos amigos, eu abri meu coração pra ele e acabamos nos apaixonando. Bem, eu achei lindo o que você fez, de ter vindo aqui cumprir sua promessa, agora tenho certeza que meu amor por você era correspondido, mas era um amor de crianças e que deve ficar no passado, como uma lembrança de uma brincadeira gostosa. Hoje eu tenho um amor maduro, tenho meus filhos, uma vida que eu não posso e nem quero largar. Eu não vou pro Rio com você, mas você pode ter certeza que nunca vou esquecer essa declaração que você fez, nunca vou esquecer do nosso passado e saiba que mesmo não tendo mais ninguém da sua família por aqui eu sempre vou estar aqui, no mesmo lugar, sempre que você precisar de uma amiga.
Mauro ouviu essas palavras, triste, não era assim que ele havia imaginado que seria. Ele achava que Flavinha largaria tudo para ir embora para o Rio. Ele não tinha mais nada que fazer ali. Despediu-se com um sorriso no rosto e uma lágrima no coração. Não olhou para trás e não viu a lágrima que caia do rosto de Flavinha quando ele foi se afastando. Desiludido, Mauro parou na rodoviária e procurou saber qual o primeiro ônibus ou van que sairia para Petrolina naquele dia. Não tinha por quê ficar mais tempo na cidade, essa não era mais sua cidade. Soube que sairia um ônibus dali a uma hora, tempo mais que suficiente para voltar ao hotel, pegar sua mala e encerrar a conta.
No caminho de volta para Petrolina ele foi pensando em tudo o que aconteceu, em como os elos com o seu passado foram corroídos pela ferrugem do tempo, pelo não cultivo das relações. E pensou também nas palavras de Flavinha. Foi então que percebeu que ela tinha razão. Eles não eram mais os mesmos, ele não era mais o Maurinho, ela não era mais a Flavinha, era Dona Flávia e não se adaptaria ao Rio e seu ritmo acelerado. E da mesma forma que eles mudaram, a cidade e a vida das pessoas de lá também mudou. A cidade não era mais a mesma porque nada é o mesmo por toda a vida, tudo muda, as pessoas e as cidades. Seu coração não estava mais triste, não havia mais dor porque sua cidade, como se lembrava, continuava a existir nas suas lembranças, nos seus sonhos e estava em seu devido lugar, no seu passado, na história da sua infância e sempre estaria lá quando ele quisesse voltar. E de qualquer forma ele ainda teria uma amiga para quando quisesse voltar para essa nova São Raimundo que tinha muito que lhe mostrar, essa nova dama, renovada e também bonita, tinha ainda sua doce Flavinha, que seria a ponte entre a sua infância e o seu futuro. E com certeza ele ia voltar, não para rever, mas para conhecer esse novo e misterioso lugar, que ele aprenderia a amar e quem sabe ainda não houvesse alguma coisa de seu, até porque tudo muda, mas as ruas continuam no mesmo lugar.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

A VOLTA (PARTE II)

(Continuação.)
Seu coração bateu mais forte e Mauro quase não conseguiu controlar uma lágrima que teimou em cair quando avistou pela janela a placa “Bem-vindo a São Raimundo Nonato”. Ele havia chegado. No principio parecia que nada havia mudado. As mesmas casas nos mesmos lugares. A pista era nova, conseqüências do progresso, mas ainda tinha o mesmo cheiro, a mesma cor. Passou pela casa de sua infância, no alto da ladeira, pensou em pedir ao motorista para parar ali mesmo, não se agüentava de ansiedade, estava a ponto de explodir, mas se conteve, queria descer na rodoviária, olhar novamente sua terra, queria que sua chegada fosse como no sonho que teve no avião.
A van parou. Era o fim. Estava em casa novamente. Era o filho pródigo, tinha voltado para mostrar o seu sucesso no sul maravilha, tinha voltado para reforçar seus laços com o passado e tinha voltado pra Flavinha. Como ela deveria estar? Será que se lembraria dele? Quando ainda morava lá e ainda era um rapazinho cheio de hormônios e timidez não teve coragem de se declarar a ela, mas tinha a certeza de que ela enxergava em seus olhos o amor que sentia. Mauro pegou sua bagagem, pôs no chão e por um instante contemplou a cidade ao seu redor. A rodoviária estava mudada, porém os bares em torno dela eram os mesmos. A van saiu e ele começou a juntar suas coisas para dar os primeiros passos rumo a sua história, ao reencontro consigo mesmo.
Mauro atravessou a rua e se dirigiu à sua antiga casa. E foi nesse momento que começou a reparar que a cidade havia mudado, muitos lugares que marcaram sua vida não existiam mais. Ele parou em frente ao local onde era o antigo cinema. No mesmo instante se lembrou das matinês do tempo de menino, das tentativas de entrar pelos fundos onde havia um pequeno córrego para ver filmes proibidos para sua idade. Tudo agora está só na memória, o cinema não existia mais, em seu lugar foi aberta uma loja parecida com as lojas de departamentos do Rio, com seções de cama, mesa e banho, vestuário e brinquedos. Continuou andando e nessa jornada começou a sentir um aperto no coração, olhava para os lados e não reconhecia mais nada, tudo havia mudado. A loja de secos e molhados do seu tio agora abrigava uma lanchonete, o bar onde costumava se encontrar com os amigos para conversar, tomar sorvete e onde aprendeu a beber agora era uma lan house. O mundo virtual havia invadido o seu passado. Entretanto sua maior decepção foi quando chegou em frente a Praça do Relógio, o ponto central da cidade. Mauro não podia acreditar no que estava vendo, seus olhos começaram a transbordar de lágrimas e não conseguiu conter o choro. O obelisco enorme com seu imponente relógio de quatro faces, que servia de referência para todos os moradores, ponto de encontro nas noites de outrora, não estava mais lá. Haviam tirado a sua maior lembrança, seu farol. No seu lugar existia agora uma praça com arcos romanos, horrorosa, uma ferida na face de sua tão bela cidade. E enquanto continuava andando ele foi se dando conta que sim, se lembrava do caminho, mas a cidade era outra. A maternidade onde havia nascido era agora uma residência, mais a frente, a ponte onde tinha tirado a foto com seu pai era apenas ornamental, não havia mais rio, ele tinha sido aterrado e começavam a aparecer construções no lugar. Sua cidade estava se favelizando.
Quando chegou ao pé da ladeira seu coração teve um alívio no descompasso. Lá nada havia mudado. A única coisa diferente na paisagem era uma praça em frente a casa de sua avó, mas que não comprometia a beleza do lugar. Mauro foi subindo a ladeira, apesar da tristeza de ver a cidade tão mudada estava feliz de ter voltado, até minimizava um pouco sua decepção.
Chegou em frente a casa. Seu coração estava acelerado. Viu que tinham colocado uma campainha. Após o estridente som de sinos uma moça bem jovem veio ao portão. Não sabia quem era, não a conhecia então perguntou:
- A Dona Josefa ou o Seu Honório estão? Ao ouvir a pergunta e com cara de espantada de ter um estranho com uma mala procurando por eles falou, um tanto desconfiada:
- Você é alguma coisa deles moço?
- Sou neto deles, eles estão?
- Moço, não sei quanto tempo o senhor está sem falar com eles, mas eles já morreram. A Dona Josefa morreu tem cinco anos e o Seu Honóro morreu tem oito anos.
- Como assim morreram, ninguém falou nada pra gente! E os filhos deles, o Pedro, a Gertrudes e o Antonio, ainda moram no mesmo lugar?
- Não os filhos deles se espalharam por aí. A mais velha já tinha ido embora a um tempão pro Rio de Janeiro, nem cheguei a conhecer ela...
- É, a minha mãe, nós saímos daqui a vinte anos atrás.
- Então, os outros, foram embora depois que os pais morreram. Um, eu acho, tá em Salvador, a Dona Gertrudes eu sei que foi pra Brasília tem um ano, mas não deixou o endereço e o Seu Pedro nem sei pra onde foi. A Dona Gertrudes foi a última a se mudar e me vendeu a casa e não tive mais contato com ninguém.
- Tá bom então, muito obrigado. Você sabe se tem algum hotel ou pousada por aqui?
- Lá do lado da Papelaria Real tem um hotelzinho bem massa, na verdade é o único da cidade, mas é bem limpinho!
- Tudo bem então, muito obrigado, essa papelaria fica no centro mesmo?
- É, depois um tantinho da rodoviária, na avenida mesmo.
- Ta bom então, tchau! E assim Mauro foi voltando o caminho que acabara de fazer. Não pensou nessa possibilidade, de não ter mais ninguém lá. Começava a achar que sua viagem tinha sido inútil. Não tinha mais qualquer elo com o lugar. A cidade havia mudado, seus tios e avós não moravam mais lá, só lhe restava Flavinha, que ele também começava a achar que não seria como nos seus sonhos.
(Continua na próxima semana.)

domingo, 13 de maio de 2007

A VOLTA (PARTE I)


Fazia vinte anos que Mauro não voltava a sua cidade natal. Ele tinha ido morar no Rio de Janeiro com apenas dezesseis anos, foi com seus pais que iam tentar a sorte no sul maravilha. Deixou para trás amigos, parentes, paixões. Lá na cidade grande estudou, formou-se, ganhou dinheiro, apaixonou-se, mas nunca esqueceu da promessa que tinha feito para Flavinha, sua amiga e primeiro amor. Dizia que um dia iria voltar para buscá-la e levá-la para morar no Rio e estava agora voltando para cumprir a promessa. Foi no avião imaginando como tudo aconteceria, imaginava diálogos, reencontros, lembrava-se de lugares que ficaram para sempre em sua memória. Ainda guardava a lembrança das ruas pequenas, das casas baixas, da ponte onde tirou uma foto com seu pai ainda pequeno, lembrava da praça em frente à paróquia onde costumava brincar com seus primos na infância e paquerava as meninas na adolescência, sentia saudades do clube onde brincava o carnaval e que tentava pular o muro nos bailes de debutantes. Imaginava tudo como havia deixado, queria que nada tivesse mudado, estava ansioso e ao mesmo tempo feliz de poder voltar para onde havia crescido, onde havia deixado de ser criança para virar homem no lupanar de Dona Santinha, de onde viveu diabruras e peraltices de menino e traquinagens de garoto crescido.
Em todos esses anos não escreveu sequer uma carta para qualquer parente. No começo foi doloroso, não queria ir e não queria manter nenhum contato com ninguém, nem com seu amor imberbe. Quando planejou a viagem pensou em escrever, ver se tinha algum parente ainda lá, porém preferiu fazer surpresa, ia com a certeza de que tudo estava como havia deixado vinte anos atrás. Não havia esquecido o caminho da rodoviária até a casa de sua avó, casa onde ele viveu com seus pais até sair da cidade. Como o vôo era longo Mauro cochilou e foi sonhando com sua chegada à rodoviária, seguindo a avenida principal, passando pela Praça do Relógio, as pessoas vindo cumprimentá-lo após reconhecê-lo, ele seguindo pela avenida de entrada da cidade subindo a ladeira e chegando em frente a casa onde nasceu e cresceu. Já se via no portão sendo recebido pela sua avó, com o mesmo cabelo branquinho e olhos doces de velhinha bondosa. Já sentia seu abraço, via a alegria em seus olhinhos, a festa dos seus tios e familiares. E foi nesse regozijo antecipado que o comandante anunciou a chega em Petrolina. Sua ansiedade aumentou. Em poucas horas estaria de novo em sua amada e saudosa cidade, estaria diante de pessoas que não via há muitos anos, estaria diante de Flavinha, seu amor juvenil, a menina que habitou seus sonhos nos mais doces anos de sua vida.
Ao sair do aeroporto se dirigiu a rodoviária para comprar a passagem até São Raimundo. Sabia que não tinha ônibus para lá toda hora, então quanto mais cedo comprasse, mais rápido sairia, e de qualquer forma teria tempo para fazer um lanche e descansar do vôo. Viu que tinham vans paradas na entrada e com placa para várias cidades próximas, inclusive a sua. Viu que uma estava saindo naquele instante. Achou que essa coincidência era um bom presságio e entrou no veículo. Seu coração batia forte. Achava mesmo que todos podiam ouvir suas batidas. Ele estava a poucas horas de ligar esses vinte anos de separação entre o Mauro maduro, professor universitário, com a carreira consolidada e o Maurinho, menino levado, criado livre nos rincões do sertão nordestino.
Ele sentou na janela para ver o caminho. A van partiu rumo ao seu passado. Mauro foi vendo e recordando cada centímetro de estrada, cada paragem. Reconhecia o cheiro de mato ressecado que só sentira quando vivera lá. Olhava o céu de um azul forte, claro, sem a fumaça dos céus das grandes cidades e o sol, era um sol forte, vivo, quente, inclemente, devido a proximidade da linha do Equador. Não conseguia pensar mais em nada, apenas contemplava a estrada. Parecia que o tempo havia parado, nada havia mudado nesses vinte anos, claro que a estrada estava muito melhor e havia as vans que eram mais confortáveis que os velhos ônibus que circulavam por aquelas estradas, mas as casinhas de pau-a-pique ainda estavam lá, os animais ainda passeavam languidamente pela estrada, os longos espaços de vazio, sem nenhuma casa ou sinal de vida. Até um trecho entre Remanso e São Raimundo era de terra, como se lembrava de quando saiu. A poeira e os solavancos nem lhe incomodavam, tudo era recordação, sua alma estava inundada de nostalgia, uma nostalgia doce, uma nostalgia que tinha o gosto dos doces de leite e umbuzadas da sua avó, tinha o cheiro de cuscuz de milho fresco do café da manhã, tinha a maciez da fruta tirada do pé. E ele não via a hora de rever tudo isso, sentir novamente esses aromas e sabores que ficaram tão distantes e que agora estavam tão próximos, ao alcance dos sentidos.


(Continua na próxima semana.)

terça-feira, 8 de maio de 2007

LER...

Ler o mundo
Ou vários mundos.
Ler a alma
Com calma.
Mergulhar bem fundo
Num rio de alegrias,
Medos e mágoa.

Ler é viajar.
Viajar por terras distantes,
De cidades frias
A desertos escaldantes.

Ler é amar,
Amar o livro.
É ter um amor proibido,
Uma paixão no horizonte,
Ter muitos amantes.

Ler é se aventurar,
É andar na floresta com um lobo
Ou entrar na mente de um louco.

Ler é viver
Uma vida em muitas.
Em tempos de paz
Ou em dias de lutas.

É ir de São Paulo à Paris,
New York a Saint Louis.
É partir de Londres ao Cairo,
Sem entrar num carro.
Tudo isso ao virar uma página,
Sem sair de casa,
Como num passe de mágica.

domingo, 6 de maio de 2007

O GUARDANAPO (PARTE FINAL)

(Continuação...)
Madureira se aproximava. Mais alguns pontos e Alberto iria saltar. Estava cansado. Queria dormir. Lembrar do que aconteceu ou esquecer-se de vez dessa noite. Seu ponto chegou. Ele levantou e ao descer da condução o ébrio rapaz levou um choque. Não podia acreditar no que via. Isso era impossível. Ele começou a questionar a sua própria lucidez. Ao colocar os pés na calçada e o ônibus partir para seu destino ele viu novamente aquele homem. O homem misterioso com sua capa de chuva, seu chapéu de gangster a fitá-lo do outro lado da rua. Estava parado com as mãos no bolso. Mas como ele poderia estar ali se o tinha visto descer no Méier? Como havia chegado lá tão rápido? E como poderia saber que ele saltaria exatamente naquele ponto? Alberto ficou tão transtornado e ao mesmo tempo assustado que não conseguiu mover um músculo. Não teve qualquer reação de atravessar a rua estreita que os separava. Mesmo sua mente dizendo que deveria atravessar a rua e descobrir quem era esse homem, suas pernas simplesmente não obedeciam. E eles ficaram ali, frente a frente. Encaravam-se. Quando finalmente o rapaz conseguiu sair de sua letargia devido ao susto e foi mudar de calçada, o homem da capa virou-se para a esquina. Foi andando rápido e desapareceu novamente noite adentro. Alberto ainda correu atrás dele para ver se o alcançava, mas foi em vão. Ele já havia sumido como que por encanto.
Aquilo estava tomando um rumo muito estranho. Alberto não conseguia pensar direito. Começou a caminhar na direção de sua casa, que ficava na mesma rua que havia acontecido o encontro, ele estava começando a ficar apavorado. O que significava tudo aquilo, ele não sabia. O que aquele homem queria com ele, muito menos. Porém o rapaz queria respostas. Resposta do que havia acontecido naquela noite e que não conseguia lembrar. Respostas daquele homem que o seguia. Queria apenas respostas. E quem poderia dá-las era a mulher do bar. Tirou o telefone do bolso. Assim que chegasse em casa ligaria para ela e esperava que tudo se esclarecesse; não iria esperar até de manhã, resolveria tudo ainda naquela noite.
Então Alberto atravessou rapidamente a esquina que há poucos minutos atrás o misterioso homem havia desaparecido. Seguiu rua acima, que no seu estado de agitação parecia muito mais longa do que já era. Ele morava exatamente no meio da rua, na parte mais alta. Não era bem uma ladeira, era mais uma pequena elevação, ma naquele momento parecia o Monte Everest. Assim que chegou ao seu portão olhou para trás na esperança de ver aquele homem novamente. Não havia ninguém. No seu intimo houve uma certa tranqüilidade por isso. Entrou em casa, foi direto para o banheiro lavar o rosto. A água fria o reanimou. Ele sentia que o efeito da bebida já havia passado quase que totalmente. Já conseguia pensar de forma mais clara. Só o intrigava o fato de ainda não se lembrar o que tinha feito naquela noite, porém de alguma maneira sabia que aquele sujeito que vinha o seguindo noite adentro tinha alguma ligação com tudo aquilo.
O rapaz foi para o quarto, procurou o guardanapo amassado com o telefone da tal mulher. Havia apenas um possível primeiro nome – Tânia – e o número. Ele sentou-se na cama, que ficava em frente à janela, tirou o fone do gancho e paralisou. Em frente a sua porta, parado estava ele, o homem misterioso. Ele acenava para Alberto chamando-o. Alberto ficou mais intrigado e assustado. Como ele poderia ter entrado em seu quintal se o portão da frente estava fechado e o muro era muito alto para alguém pular. Ele então se dirigiu a porta muito amedrontado, mas mesmo assim foi. Sua curiosidade era maior que seu medo e ele queria saber o que estava acontecendo, o que esse homem queria com ele.
Quando Alberto abriu a porta o homem entrou sala adentro e se posicionou no canto mais escuro. Não tirou o chapéu. Alberto tentou ver seu rosto, mas ele se esquivou. Então Alberto perguntou:
- O que você quer comigo?
- Eu vi o que você fez! – Disse o homem.
- E quem é você? O que você viu que eu fiz?
- A culpa foi sua, toda sua. Aquele homem quase morreu. Você é um animal, deve ser preso como todo animal selvagem. Você se descontrolou e agora aquele homem pode morrer.
- Mas o que foi que eu fiz? Que homem é esse? Não sei do que você está falando. – Alberto estava se desesperando. Já começava a perder o controle, se esse sujeito na sua frente falasse não falasse logo o que tinha para dizer ele não responderia por si.
- Estou aqui para que você seja punido. – disse o homem de capa – estou aqui para lhe mostrar o que há de pior dentro de você. Foi pó r causa dela, da Tânia, uma mulher que você nem conhecia. Foi por isso que perdeu o controle. Por causa de uma prostituta. Ela precisava se livrar de alguém e você a ajudou. Ajudou uma vagabunda e quase matou um homem.
- Eu não fiz nada disso. Não sei quem é Tânia. Conta logo, por que você vem me seguindo!
- Tânia, a mulher que lhe deu esse guardanapo. Você não se lembra. Ela se aproximou de você no bar. Você estava sozinho. Queria afogar as mágoas. Aproveitou a festa para se distrair, mas não estava conseguindo. Ela pediu um drink, um copo de tequila. Você pagou. Não pensava em mais nada, apenas na possibilidade de não ficar só essa noite. Estava tão embevecido por sua beleza selvagem. Por sua sensualidade lasciva que nem notou quando ela colocou uma droga em sua bebida. Nem percebeu que só enxergava um trouxa para arrancar dinheiro. Tanto não percebeu suas intenções que quando seu cafetão chegou para lhe cobrar o programa anterior, você não pensou duas vezes em defendê-la. Não imaginou que aquele sujeito era tão sujo e sórdido quanto ela e que era não só seu patrão, como também seu amante. Vocês dois discutiram. Você perdeu o controle. Começaram a brigar. Houve tumulto. Correria. Que ela aproveitou para fugir de vocês. Você o jogou no chão, sentou em seu peito e começou a esmurrar a sua cara. Começou a perder o controle. Os seguranças tentaram contê-lo, porém era tarde demais. Você já tinha liberado este monstro que tem dentro de você. Você não parava. Não conseguia enxergar. Só via o vermelho do sangue. Apenas batia, batia, batia, até transformar a cara do sujeito numa pasta de sangue e ossos quebrados. Teve que vir seis seguranças para lhe segurar. Vieram tarde, o homem há muito tempo já estava inconsciente. Quando os seguranças iam chamar a policia, você se esquivou e saiu à surdina de lá.
- Como você pode afirmar isso. – Disse Alberto, já completamente sóbrio e com um olhar sombrio, e tentava reconhecer aquela voz que lhe soava tão familiar, só não conseguia lembrar de onde a conhecia.
- Eu estava lá. Estava com você o tempo todo. Eu tentei lhe avisar para não beber com aquela mulher. Eu tentei te impedir de se envolver na discussão. Tentei ainda evitar que você brigasse, mas você não me ouviu. E eu venho há noite inteira te acompanhando, como sempre faço, para tentar lhe mostrar o que você fez. Para tentar impedir que você faça essa besteira novamente.
- Mas como você estava lá comigo. Eu fui sozinho. Só notei você atrás de mim na Rio Branco... Espera aí, quem é você realmente? – E enquanto perguntava, Alberto foi pra cima do homem e arrancou seu chapéu. Ele não ofereceu resistência alguma e Alberto deu um passo para trás assustado. Ele não tinha reação. Não era possível que aquilo estivesse acontecendo com ele. Era surreal. Aquele homem, aquele homem que vinha seguindo-o por toda noite, tinha o seu rosto. Na verdade era ele mesmo, mas como era possível? E gaguejando e com um fio e voz que buscou lá no fundo do seu ser perguntou:
- Quem, quem é você?
- Sua consciência, Alberto. Sua consciência...
Alberto se levantou num susto. Era dez e meia da manhã. Uma linda manhã de sábado. Ele estava com dor de cabeça. Tinha tido um pesadelo. Foi ao banheiro, lavou o rosto tentando entender aquele sonho da noite passada. Um sonho estranho. Foi em direção a cozinha preparar um café. Estava realmente com muita dor e muito cansado. Havia chegado tarde em casa, tinha ido a uma festa e tinha bebido demais. Vai ver era por isso que tinha tido aquele sonho. Decidiu parar de beber, pelo menos nas próximas semanas. Ainda pensava no sonhe esquisito que havia tido quando sentou no sofá para tomar sua xícara de café. Viu um papel amassado no chão. Pegou para jogar no lixo, mas antes abriu para ver se era algo importante. Quando abriu deixou a xícara cair no chão. Estava lívido. No papel tinha um telefone e um nome: Tânia.